Volvere
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Heitor... Heitor...
Ø
A
cela ainda estava escura e gelada, as grades no turbilhão
inconstante da agitação de seus pensamentos transformavam-se em
desenhos abstratos, seus olhos já o enganavam, ludibriavam os traços
da realidade... Não havia conseguido dormir esta noite, sua última
noite...
Tivera
bastante tempo para pensar em tudo o que havia feito às pessoas...
Ossos do ofício? Talvez... Não se arrependia de nada! A sua
arte/oficio o levara a lugares diferentes, exóticos,
inimagináveis... Atravessara oceanos, montanhas e floretas,
cavalgara os melhores cavalos, bebera os melhores vinhos, conhecera
príncipes, condessas, bispos, bruxos... Tivera uma grande vida!
Maior do que a grande maioria das vidas que conhecera... E também
das que ajudara a antecipar o final...
Seis
horas da manhã... Podia ouvir o badalar do sino o avisando que a
hora estava chegando, seus olhos estavam úmidos, mas não sentia-se
no direito de derramar suas lágrimas, imaginou quantas já fez as
pessoas derramarem... Quanta dor havia causado?
Estava
no direito de sentir a sua dor? Quem lhe deu este direito? Achava que
ninguém... Procurava a resposta...
As
horas haviam passado depressa, em pouco tempo o guarda trouxera-lhe a
famosa última refeição, a escolhera na noite anterior... O arroz,
as batatas e o filé de peixe ensopado lhe pareceram uma boa opção...
Mas agora, o cheiro da comida embrulhava-lhe o estômago...
Flashes
passavam sob seus olhos o tempo inteiro... Ainda podera ouvir os
gritos horrorizados que causava em suas vitimas e sentira novamente o
prazer habitual em ouvi-los... Mesmo que fossem só em seus
pensamentos...
E
assim permaneceu por quase todo o dia, sentado no chão e com os
olhos fechados, até um padre aproximara-se de sua cela, as grades
foram abertas e o sacerdote entrara com um Bíblia em mãos...
“Filho...
ajoelhe-se e peça perdão por seus pecados, redima-se perante
Deus”... “Pai nosso que estais nos céus, santificado seja o
vosso nome”
Assim
sincronicamente repetira as palavras do padre e aguardara o momento
derradeiro... Uma, duas, três... O sino anunciava a hora a que tanto
aguardara e que tanto temia. Levantou-se, as grades foram abertas
novamente, saiu até o corredor principal acompanhado do padre, os
braços para trás foram algemados...
“Força”
“Vá com Deus” Ouviu alguns dos outros presos enquanto caminhavam
até o pátio... As portas se abriram.
O
pátio vazio, molhado pela chuva que havia encharcado a todos os
presentes... Três guardas, o padre e um carrasco... Sentiu uma certa
decepção... Achara que sua fama atrairia algumas pessoas,
atravessou o pátio, estava com medo e já não controlava mais as
lágrimas que insistiam em soltar-se dos olhos e lançarem-se ao
chão... Não se importava mais...
Subiu
os degraus cuidadosamente, seria a última escada que subiria e
gostaria de poder aproveitar um pouco mais a sensação que as gotas
da chuva lhe causavam...
Foi
posicionado sobre a pequena escotilha comandada pela alavanca que
ficava à esquerda, a corda foi passada por seu pescoço e o nó foi
ajustado pelo homem vestido com a capa negra... Um dos oficiais do
exército imperial se aproximou, visivelmente incomodado pela chuva e
pelo dever que o tirara do conforto...
“
…O senhor é acusado de vários homicídios, ocultação de
cadáveres, motim contra o império, pirataria e bruxaria... Algo a
dizer em sua defesa?”
Sob
a negativa do acusado, o oficial fez um pequeno gesto e a alavanca
fora puxada...
O
destino estava de mau humor aquela tarde, pois suas vertebras não
quebraram com o impacto... A corda apertando-lhe o pescoço,
empurrava sua língua para cima e para fora, os pulmões gritavam por
mais um pouco de ar e seu corpo com as mãos algemadas para trás
debatia-se descontroladamente...
O
que deveriam ser poucos segundos transformavam-se em momentos
intermináveis de angústia e dor, seus gritos presos não
conseguiram ser emitidos... Mantinha os olhos abertos enquanto
tentava inutilmente controlar a dor lacerante que queimava-lhe o
peito e a garganta como fogo... Após sentir suas pálpebras fechando
ainda conseguiu ouvir o distante badalar do sino... E a escuridão o
tomou por completo...
Ø
-
Heitor, tudo bem? Consegue entender o que eu digo? Pisque os olhos ou
aperte a minha mão se conseguir... - O homem com a roupa verde e
máscara cirúrgica batia em seu ombro e o olhava enquanto falava... -
Você está bem agora, quase morreu... Mas agora você está bem...
-
Enfermeira vou diminuir os parâmetros do ventilador, o glasgow do
paciente está em 11T e vamos extubá-lo daqui a pouco...
Heitor
não fazia ideia do que ocorrera com ele, ouvia o som dos monitores e
sentia o manguito aferindo sua pressão... Procurava uma resposta...
Mais uma vez o estranho sonho se repetira... E maldita dor no pescoço
ainda continuava...
AllisonRdS