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sexta-feira, 18 de julho de 2014

Volvere...

Volvere



- Heitor... Heitor...
Ø


A cela ainda estava escura e gelada, as grades no turbilhão inconstante da agitação de seus pensamentos transformavam-se em desenhos abstratos, seus olhos já o enganavam, ludibriavam os traços da realidade... Não havia conseguido dormir esta noite, sua última noite...
Tivera bastante tempo para pensar em tudo o que havia feito às pessoas... Ossos do ofício? Talvez... Não se arrependia de nada! A sua arte/oficio o levara a lugares diferentes, exóticos, inimagináveis... Atravessara oceanos, montanhas e floretas, cavalgara os melhores cavalos, bebera os melhores vinhos, conhecera príncipes, condessas, bispos, bruxos... Tivera uma grande vida! Maior do que a grande maioria das vidas que conhecera... E também das que ajudara a antecipar o final...
Seis horas da manhã... Podia ouvir o badalar do sino o avisando que a hora estava chegando, seus olhos estavam úmidos, mas não sentia-se no direito de derramar suas lágrimas, imaginou quantas já fez as pessoas derramarem... Quanta dor havia causado?
Estava no direito de sentir a sua dor? Quem lhe deu este direito? Achava que ninguém... Procurava a resposta...
As horas haviam passado depressa, em pouco tempo o guarda trouxera-lhe a famosa última refeição, a escolhera na noite anterior... O arroz, as batatas e o filé de peixe ensopado lhe pareceram uma boa opção... Mas agora, o cheiro da comida embrulhava-lhe o estômago...
Flashes passavam sob seus olhos o tempo inteiro... Ainda podera ouvir os gritos horrorizados que causava em suas vitimas e sentira novamente o prazer habitual em ouvi-los... Mesmo que fossem só em seus pensamentos...
E assim permaneceu por quase todo o dia, sentado no chão e com os olhos fechados, até um padre aproximara-se de sua cela, as grades foram abertas e o sacerdote entrara com um Bíblia em mãos...
“Filho... ajoelhe-se e peça perdão por seus pecados, redima-se perante Deus”... “Pai nosso que estais nos céus, santificado seja o vosso nome”
Assim sincronicamente repetira as palavras do padre e aguardara o momento derradeiro... Uma, duas, três... O sino anunciava a hora a que tanto aguardara e que tanto temia. Levantou-se, as grades foram abertas novamente, saiu até o corredor principal acompanhado do padre, os braços para trás foram algemados...
“Força” “Vá com Deus” Ouviu alguns dos outros presos enquanto caminhavam até o pátio... As portas se abriram.
O pátio vazio, molhado pela chuva que havia encharcado a todos os presentes... Três guardas, o padre e um carrasco... Sentiu uma certa decepção... Achara que sua fama atrairia algumas pessoas, atravessou o pátio, estava com medo e já não controlava mais as lágrimas que insistiam em soltar-se dos olhos e lançarem-se ao chão... Não se importava mais...
Subiu os degraus cuidadosamente, seria a última escada que subiria e gostaria de poder aproveitar um pouco mais a sensação que as gotas da chuva lhe causavam...
Foi posicionado sobre a pequena escotilha comandada pela alavanca que ficava à esquerda, a corda foi passada por seu pescoço e o nó foi ajustado pelo homem vestido com a capa negra... Um dos oficiais do exército imperial se aproximou, visivelmente incomodado pela chuva e pelo dever que o tirara do conforto...
“ …O senhor é acusado de vários homicídios, ocultação de cadáveres, motim contra o império, pirataria e bruxaria... Algo a dizer em sua defesa?”
Sob a negativa do acusado, o oficial fez um pequeno gesto e a alavanca fora puxada...
O destino estava de mau humor aquela tarde, pois suas vertebras não quebraram com o impacto... A corda apertando-lhe o pescoço, empurrava sua língua para cima e para fora, os pulmões gritavam por mais um pouco de ar e seu corpo com as mãos algemadas para trás debatia-se descontroladamente...
O que deveriam ser poucos segundos transformavam-se em momentos intermináveis de angústia e dor, seus gritos presos não conseguiram ser emitidos... Mantinha os olhos abertos enquanto tentava inutilmente controlar a dor lacerante que queimava-lhe o peito e a garganta como fogo... Após sentir suas pálpebras fechando ainda conseguiu ouvir o distante badalar do sino... E a escuridão o tomou por completo...

Ø

- Heitor, tudo bem? Consegue entender o que eu digo? Pisque os olhos ou aperte a minha mão se conseguir... - O homem com a roupa verde e máscara cirúrgica batia em seu ombro e o olhava enquanto falava... - Você está bem agora, quase morreu... Mas agora você está bem...
- Enfermeira vou diminuir os parâmetros do ventilador, o glasgow do paciente está em 11T e vamos extubá-lo daqui a pouco...
Heitor não fazia ideia do que ocorrera com ele, ouvia o som dos monitores e sentia o manguito aferindo sua pressão... Procurava uma resposta... Mais uma vez o estranho sonho se repetira... E maldita dor no pescoço ainda continuava...


AllisonRdS

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