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quinta-feira, 26 de junho de 2014

Allegro, mas nem tanto...

 Allegro, mas nem tanto...


Em silêncio a porta fechara-se...

Lá... Mi... Fá... Colcheias e semi colcheias indicavam qual seria a próxima nota a ser tocada... Seu coração estava apertado esta noite, não sabia o motivo... O arco passeava pelas cordas do cello mais uma vez... Sonata para violoncelo nº3, opus 69, Beethoven, L.Van... Uma das partituras que mais lhe agradava, seria a solista desta noite e estava praticando há um bom tempo, lembrara de escrever seu nome em um dos cantos da folha, sempre perdia suas partituras não identificadas...
A música... Era perfeita e ela não poderia açoitar os ouvidos do público esta noite com notas desafinadas ou dissonâncias oportunistas, muito menos os ouvidos de Anthony...
- Perfeição é o mínimo exigido aqui... - Ainda podia ouvir as palavras carregadas de fúria e gotículas de saliva do maestro Anthony caindo sobre sua estante... “Perfeição...” “Perfeição é o mínimo exigido” - As palavras não saíam de sua cabeça nem por um momento...
O sótão estava gelado aquela tarde, a bela violoncelista sentira os dedos e os olhos queimando, encostara o arco em um banquinho próximo à estante de madeira, posicionara o instrumento de ensaio de uma maneira adequada e enfim, após quase duas horas levantara-se da cadeira propositalmente desconfortável e de frente para a parede marrom, janelas ou estofados na cadeira poderiam distraí-la... Olhara as folhas das árvores pela janela, dançavam sob a força do gélido vento daquela tarde de outono... Já estava na hora, o teatro estaria lotado? Maquiou-se e passara seu perfume favorito...
Descera até o salão principal, já conseguira ouvir os músicos da orquestra subindo no palco... Aplausos... Sim, o teatro estava lotado mais uma vez... A cauda de seu longo vestido arrastara-se pelos degraus da luxuosa escada do Pedro II, passara pelas portas e vira o seu reflexo nas vidraças, achou-se bonita, seu longo cabelo negro estava impecavelmente penteado e o longo vestido vermelho combinava com a maquiagem e os sapatos tão cuidadosamente escolhidos por sua mãe... “Perfeição é o mínimo exigido”...
O caminho solitário que Isabelle percorrera entre o sótão e o palco parecia não terminar, estava nervosa, como sempre ficava antes de cada concerto... A pequena mesa estava no lugar de sempre, Isabelle apanhara a jarra de cristal e colocara um pouco de água na taça... Sua boca estava seca e apesar do tempo gelado a seu redor, sentia muito calor, talvez um calor movido pela ansiedade. Esperou alguns instantes atrás das grandes cortinas vermelhas, observara os outros membros da orquestra sentados e entrara no palco... Aplausos... Agradecera a plateia, os balcões e camarotes... Sentou-se em sua cadeira e posicionou seu cello francês entre os joelhos, aguardou o spalla entrar no palco e sentar-se à esquerda do maestro... O estridente lá saíra do Stradivarius do spalla... Acertara a afinação, observara Anthony entrar no palco... Mais aplausos...
O maestro tocou três vezes em sua estante com a batuta... Os olhos de Isabelle voltaram-se à partitura... Sonata nº 03, Opus 69... Allegro, mas nem tanto... As mãos do maestro italiano ergueram-se... Abaixaram-se e o arco de Isabelle finalmente acariciara as cordas de seu cello...


- Tá ouvindo Cláudio?
- Não estou ouvindo nada cara, sobe a tinta...
- A música...
- Liga o rádio que você desencana, não tem música nenhuma, agora sobe a tinta...
André subira novamente as escadas do andaime com a lata de tinta nas mãos... Era recém-contratado da empresa de engenharia responsável pela restauração do teatro que fora consumido por um incêndio há muitos anos, sempre ouvira a mesma música no final da tarde, depois das 17h via algo estranho no palco, ouvia o som e sentia o perfume...
Estranho, pois mais ninguém via, ouvia ou sentia o perfume...Deixou a tinta aos pés do restaurador e fora até o palco, levara a lanterna e seguira iluminando os escombros, queria olhar mais de perto... Subira uma escada e encontrara uma porta praticamente intacta... O perfume doce, o aroma que o fascinara estava aqui... Seu coração se apertara... Abrira a porta em um único empurrão...
Nada... Apenas escombros a céu aberto, o que um dia fora o sótão de um dos teatros mais luxuosos do país hoje não passava de um amontoado de madeira queimada, o sol já deitava atrás dos prédios do centro da cidade e o tom amarelo revelara algo à luz do crepúsculo... Abaixara-se e pegara entre os pedaços de madeira queimada um pequeno pedaço de papel... “Sonata para violoncelo nº3, Opus 69. Beethoven, L. Van” - Isabelle Dias...


Isabelle ensaiava novamente quando sua porta fora aberta e seu coração quase saíra pela boca...


AllisonRdS

Um comentário:

  1. Lindo, sempre que leio seus contos fico com sede de ler mais e mais. Parabéns.

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