Allegro,
mas nem tanto...
Em
silêncio a porta fechara-se...
∞
Lá...
Mi... Fá... Colcheias e semi colcheias indicavam qual seria a próxima
nota a ser tocada... Seu coração estava apertado esta noite, não
sabia o motivo... O arco passeava pelas cordas do cello mais uma
vez... Sonata para violoncelo nº3, opus 69, Beethoven, L.Van... Uma
das partituras que mais lhe agradava, seria a solista desta noite e
estava praticando há um bom tempo, lembrara de escrever seu nome em
um dos cantos da folha, sempre perdia suas partituras não
identificadas...
A
música... Era perfeita e ela não poderia açoitar os ouvidos do
público esta noite com notas desafinadas ou dissonâncias
oportunistas, muito menos os ouvidos de Anthony...
-
Perfeição é o mínimo exigido aqui... - Ainda podia ouvir as
palavras carregadas de fúria e gotículas de saliva do maestro
Anthony caindo sobre sua estante... “Perfeição...” “Perfeição
é o mínimo exigido” - As palavras não saíam de sua cabeça nem
por um momento...
O
sótão estava gelado aquela tarde, a bela violoncelista sentira os
dedos e os olhos queimando, encostara o arco em um banquinho próximo
à estante de madeira, posicionara o instrumento de ensaio de uma
maneira adequada e enfim, após quase duas horas levantara-se da
cadeira propositalmente desconfortável e de frente para a parede
marrom, janelas ou estofados na cadeira poderiam distraí-la...
Olhara as folhas das árvores pela janela, dançavam sob a força do
gélido vento daquela tarde de outono... Já estava na hora, o teatro
estaria lotado? Maquiou-se e passara seu perfume favorito...
Descera
até o salão principal, já conseguira ouvir os músicos da
orquestra subindo no palco... Aplausos... Sim, o teatro estava lotado
mais uma vez... A cauda de seu longo vestido arrastara-se pelos
degraus da luxuosa escada do Pedro II, passara pelas portas e vira o
seu reflexo nas vidraças, achou-se bonita, seu longo cabelo negro
estava impecavelmente penteado e o longo vestido vermelho combinava
com a maquiagem e os sapatos tão cuidadosamente escolhidos por sua
mãe... “Perfeição é o mínimo exigido”...
O
caminho solitário que Isabelle percorrera entre o sótão e o palco
parecia não terminar, estava nervosa, como sempre ficava antes de
cada concerto... A pequena mesa estava no lugar de sempre, Isabelle
apanhara a jarra de cristal e colocara um pouco de água na taça...
Sua boca estava seca e apesar do tempo gelado a seu redor, sentia
muito calor, talvez um calor movido pela ansiedade. Esperou alguns
instantes atrás das grandes cortinas vermelhas, observara os outros
membros da orquestra sentados e entrara no palco... Aplausos...
Agradecera a plateia, os balcões e camarotes... Sentou-se em sua
cadeira e posicionou seu cello francês entre os joelhos, aguardou o
spalla entrar no palco e sentar-se à esquerda do maestro... O
estridente lá saíra do Stradivarius do spalla... Acertara a
afinação, observara Anthony entrar no palco... Mais aplausos...
O
maestro tocou três vezes em sua estante com a batuta... Os olhos de
Isabelle voltaram-se à partitura... Sonata nº 03, Opus 69...
Allegro, mas nem tanto... As mãos do maestro italiano ergueram-se...
Abaixaram-se e o arco de Isabelle finalmente acariciara as cordas de
seu cello...
∞
-
Tá ouvindo
Cláudio?
-
Não estou ouvindo nada cara, sobe a tinta...
-
A música...
-
Liga o rádio que você desencana, não tem música nenhuma, agora
sobe a tinta...
André
subira novamente as escadas do andaime com a lata de tinta nas
mãos... Era recém-contratado da empresa de engenharia responsável
pela restauração do teatro que fora consumido por um incêndio há
muitos anos, sempre ouvira a mesma música no final da tarde, depois
das 17h via algo estranho no palco, ouvia o som e sentia o perfume...
Estranho,
pois mais ninguém via, ouvia ou sentia o perfume...Deixou a tinta
aos pés do restaurador e fora até o palco, levara a lanterna e
seguira iluminando os escombros, queria olhar mais de perto... Subira
uma escada e encontrara uma porta praticamente intacta... O perfume
doce, o aroma que o fascinara estava aqui... Seu coração se
apertara... Abrira a porta em um único empurrão...
Nada...
Apenas escombros a céu aberto, o que um dia fora o sótão de um dos
teatros mais luxuosos do país hoje não passava de um amontoado de
madeira queimada, o sol já deitava atrás dos prédios do centro da
cidade e o tom amarelo revelara algo à luz do crepúsculo...
Abaixara-se e pegara entre os pedaços de madeira queimada um pequeno
pedaço de papel... “Sonata para violoncelo nº3, Opus 69.
Beethoven, L. Van” - Isabelle Dias...
∞
Isabelle
ensaiava novamente quando sua porta fora aberta e seu coração quase
saíra pela boca...
AllisonRdS
Lindo, sempre que leio seus contos fico com sede de ler mais e mais. Parabéns.
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