Conto
1- Continnum...
O
homem olhava o contraste em que a cidade se apresentava aquela noite,
nada de diferente do que quase sempre acontece... Seus olhos já
cansados ardiam e sua visão já embaralhava-se, contemplava ao mesmo
tempo a tranquilidade que a luz da lua proporcionava e a caótica
disputa por espaço e atenção em que outdoors, lâmpadas de neon e
faróis de carros e motocicletas se engrenavam... Estava em pé
sobre a mureta que um dia havia sido projetada e construída para
proteger alguém de uma queda eventual, mas pelo visto isso já fora
há muito tempo...
Haviam
apenas duas opções à sua disposição, talvez houvessem mais, mas
não conseguia vê-las... Voltar para dentro e terminar o que havia
começado ou simplesmente dar um passo adiante, despencar em uma
queda livre do vigésimo andar e encontrar o asfalto esburacado...
Qual seria a melhor delas? Há uns vinte minutos media os prós e os
contras de cada uma...
Se
voltasse teria que encarar aqueles olhos inquisidores novamente,
embrulhá-la, descer as escadas do prédio a levando sobre os ombros
e correr o risco de ser apanhado antes mesmo de definir os próximos
passos. Já se pulasse tudo terminaria bem... Ou descobriria que a
teoria de que os suicidas repetem continuamente seus últimos
momentos é verdadeira...
“Se eu fosse embora agora, será que você entenderia? O silêncio lhe
dizendo que a culpa não foi sua... É que eu nasci com o pé na
estrada e com a cabeça lá na lua...” As frases da música que
ouvira há pouco não saiam de sua cabeça, havia ligado o i-pod para
abafar alguns possíveis sons que o entregariam... Havia planejado
tudo, seria perfeito... Mas... Parece que ouvira algo... Uma gélida
brisa tocara seu corpo, cruzou os braços em torno do tórax nu na
inútil tentativa de se proteger de algo, talvez do frio...
Enfim
tomara sua decisão...
Deu
um passo atrás... Desceu e entrou novamente pela porta de vidro
ainda aberta, passou pela cortina e viu que ela ainda estava lá,
inerte... A camisa ainda cobria seu rosto, não conseguira
encará-la...“ O que eu fiz?”... Respingos de sangue davam uma
nova decoração à luxuosa sala de estar do apartamento de
cobertura, tanto tempo depois... “Que merda eu fiz???”... A
estátua africana com suas impressões digitais permanecia perto
dela, morta... As lágrimas começaram a escorrer pelo seu rosto
novamente... Seus pés descalços tiveram a incômoda sensação de
pisar em uma placa de sangue coagulado...
Novamente
a brisa gelada... Sua respiração começara a acelerar, a sala
inteira estava gelada agora... Saia fumaça quando expirava...
Abaixou-se e puxou a camisa... Os olhos estavam abertos, ela o estava
encarando novamente... A têmpora aberta e o tapete que um dia fora
branco mudara com a cor de seu sangue... Sentia medo agora, muito
medo, estava perdido...
-
Abra a porta! - A voz firme de um homem pudera ser ouvida acima da
música, acompanhada de diversas batidas na porta... - Abre a porra
da porta, senão vou arrombar...
Tomas
não tivera mais dúvidas, jogou a camisa novamente sobre o rosto da
esposa inerte, virou-se de frente para a porta de vidro e correu...
Liberdade... Fora sua única sensação ao visualizar o asfalto da
avenida mais cara de Ribeirão aproximando-se de seu rosto... Ouvia o
vento inerte respondendo à velocidade com que seu corpo
despencava... As grades do prédio... o gramado... o som do vento...
frio... escuridão... escuridão... escuridão... silêncio...
…
Olhava
novamente o contraste em que a cidade se apresentava aquela noite,
nada diferente do que quase sempre acontece... Seus olhos já cansados ardiam e sua visão já embaralhava-se...
AllisonRdS
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